Pés na estrada e coisas incríveis acontecem

Mochila nas costas e pés na estrada. Pegamos carona, ônibus, trem e caminhamos por estradas de terra e trilhas em meio à mata. Por algum tempo fomos guiados pelos trilhos do trem de Minas. O caminho até a cidadezinha construída com pedras brancas em uma das montanhas mais altas dos vales do Sul foi de grandes descobertas. Fundada pelos ripes, místicos e esotéricos, há quem diz conhecer a floresta dos duendes ou já ter visto óvnis por lá. Não vimos seres da floresta nem extraterrestres, porém pudemos sentir coisas incríveis. O som do vento, que mais parecia o canto de anjos com suaves notas musicais, abençoava aquela jornada num horizonte infinito de 360 graus visto da pirâmide de São Tomé das Letras. Anoiteceu o céu mais deslumbrante que pude conhecer. Toda aquela magia começou a se materializar no dia seguinte durante conversa com um “maluco”. De cabelos longos, encaracolados e embaraçados, ele perambulava com os pés descalços nas estreitas ruas da cidade de pedras. Impossível não nota-lo. E foi ele que nos revelou uma grande lição.

O maluco do amor

_ Amem! Foi com esta palavra que ele se aproximou.

Estávamos sentados no chão de pedras, comendo pão com queijo, após um lindo dia de trilhas e banhos de cachoeira. O homem de pés descalços entrou na pequena mercearia, pediu um copo com água, voltou-se para fora, sentou-se do nosso lado. Olhou profundamente para nós e disse:

_Amar é o que importa.
Como se nos conhecesse, ele continuou a falar:

_Durante a última revolução do meu coração descobri o amor. Venho de terra distante. Vim em busca de respostas e chego até aqui com uma compreensão. Amar nos faz existir como pessoas.
Um presente ouvir aquele maluco falar de amor em um momento da vida em que buscava respostas para aquietar o coração. Era tempo de permitir conhecer mundos novos, novas pessoas e histórias de vida. Aprender com todas as surpresas do caminho.

Ele se levantou e vagarosamente foi saindo, deixando novas palavras.

_ O amor verdadeiro não exige nada, ele liberta. Amar para se libertar e descobrir o grande presente que é a vida. A vida é curta, por isso, ame-a!

E o sol foi se pondo entre as montanhas. Terminamos aquele segundo dia na cidade das pedras com a certeza de que algo novo aconteceu. O homem se foi, mas ficou o grande desafio daquela lição: viver o amor, um mundo acolhedor que nasce primeiro dentro de cada um de nós e que é capaz de nos mostrar a própria jornada.

O amigo Zé Feliz

Estávamos no terceiro dia de viagem e um cão, que denominamos Zé Feliz, continuava nos acompanhando. Ele apareceu logo após a conversa com o “maluco do amor”, quando passávamos perto da igrejinha. Seguia-nos até a pousada, localizada próxima a Pedra da Bruxa, um dos pontos mais altos do vale de montanhas.

Zé Feliz aparecia todas as manhãs e nos acompanhava pelas trilhas. Ele ia sempre à frente indicando o caminho. Brincava com as borboletas, mergulhava nas águas limpas e geladas do vale, rolava na terra, se divertia com as folhas.

No dia da partida, véspera de Carnaval, acordamos de madrugada para embarcar em outro destino. A cidade das pedras tinha ganhado uma nova cara. Jovens chegavam de toda parte até a praça onde nosso ônibus estava estacionado. Na voz de muitas pessoas que amanheciam por ali, “Chão de Giz” deixava aquele momento de gratidão ainda mais sensacional. Quando pegávamos nossas mochilas para partir tivemos uma grande surpresa. Zé Feliz apareceu todo alegre, com um sorriso de adeus!

A Maria Fumaça está partindo

Logo que chegamos a São João Del Rei senti a agitação do Carnaval. As margens do córrego do Lenheiro, alguns rapazes passavam com pranchas de surf e arrastavam centenas de pessoas do bloco “Vamos a la Playa”. Para mineiro tudo vira praia! E foi em meio à energia desse povo criativo, festeiro e hospitaleiro que fomos recebidos.

Deixamos nossas mochilas na república de nossos amigos e fomos conhecer a terra do herói Tiradentes, do presidente Tancredo Neves e da primeira poeta mulher do Brasil, Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira. Lindas e enormes palmeiras imperiais centenárias, em meio à arquitetura colonial, traduziam toda a atmosfera da Inconfidência Mineira. Como dizem: “São João Del Rei tem sonhos de liberdade”.

Passo a passo, nos deparamos com a Estação Ferroviária. Bem na entrada, um senhor baixinho e sorridente, de boina e uniforme épico, nos recebeu com um delicioso bom dia! Ele nos informou: “A Maria Fumaça já está partindo e tem apenas dois lugares no último vagão. Se quiserem embarcar, tiro a passagem de vocês no trem mesmo, pois não há mais tempo”. Como recusar aquela informação que chegou como um convite? Embarcamos!

Tiradentes foi um aconchego de aventuras

Desembarcamos da Maria Fumaça e caminhamos ao encontro do primeiro desafio. Havia chovido muito na região, nos últimos dias, e a ponte de acesso a Tiradentes tinha sido levada pela enchente. Não havia mais entrada para os veículos. A única alternativa era embarcar num bote do exército brasileiro amarrado nas duas extremidades do rio por um cabo de aço. A correnteza estava forte, mas a travessia foi segura.

O segundo obstáculo recordou a minha infância na fazendo do vovô Sérgio. Atravessamos uma pinguela improvisada sobre um córrego fundo. E caminhamos para adentrar àquela cidadezinha que mais parecia um grande espaço cultural. Experimentamos tudo de melhor que a tradição mineira pode oferecer. Além do aconchego de aventuras, o sabor da culinária nas panelas de pedra foi algo inesquecível na histórica cidade que dá nome a um homem e seu legado de liberdade.

Aquele sabor de descobertas foi o que nos despertou para a nossa próxima parada.

De papo pro ar no Festival de Inverno

Berço da arquitetura barroca, da revolta dos inconfidentes e da poesia dos árcades, Ouro Preto se aquece durante o Festival de Inverno. Descemos as ladeiras rumo ao centro respirando arte. A antiga Vila Rica estava vestida de adereços com as apresentações públicas de teatro, dança, fotografia, pintura, escultura, literatura, música. A cada passo uma surpresa de um universo artístico inusitado.

A própria cidade oferece um estado de inspiração através da sua arquitetura, rica em ouro e detalhes. À luz de lampiões caminhávamos na antiga metrópole de calçadas e ruas de pedras, enquanto avistávamos as 13 igrejas barrocas nos topos das suas colinas. A 1.179 metros do nível do mar, naquele mês de julho, as temperaturas eram baixas e de manhã a cidade ficada encoberta pela névoa branca.

Foram três dias de encantamento com a criatividade humana até sentirmos que era hora de renovar as energias e buscarmos a natureza! A sensação era de pedir uma trégua, afinal tanta informação chegando através de uma verdadeira explosão artística e cultural, em meio às vibrações da história de escravidão e liberdade da cidade de Ouro Preto, nos deixavam zonzos.

Conversando com guias turísticos descobrimos quem nos guiaria nas trilhas da região: Indiana Jones. O apelido surgiu por causa da semelhança do seu chapéu com o usado pelo personagem principal do filme Indiana Jones. O passeio ecológico começou às 11 horas. Um ônibus coletivo nos conduziu até o ponto final no alto da cidade.

Logo que desembarcamos, comecei uma conversa com dois garotos que brincavam de bola. Eles decidiram nos acompanhar nessa caminhada. Após quatro quilômetros de descida pelo Parque das Andorinhas, entre montanhas e pássaros, chegamos à Cachoeira das Andorinhas. A 1.300 metros de altitude, a cachoeira fica no interior de uma formação rochosa semelhante a uma gruta e, é assim chamada por abrigar grande quantidade de andorinhões-de-coleira (andorinhas) no verão.

Os garotos, que conheciam bem o local, foram na frente se aventurando na descida até chegarem à queda d’água gelada. Mergulhamos e renovamos! Partimos para uma escalada. A vista do alto era de encher os olhos. Assentados bem na ponta da Pedra do Jacaré, ficamos ali de papo pro ar até o entardecer ouvindo as incríveis histórias de Indiana Jones. As andorinhas chegavam de todos os lados para se abrigarem nas grutas da cachoeira e anunciavam que já era hora de partirmos.

Coincidências ou providências?

Quem já se aventurou por aí compreende que até as pequenas coincidências da jornada são grandes providências. Após o texto anterior, “Como nômades ou minimalistas”, senti que deveria descrever um pouco desta viagem, uma das mais especiais da minha vida. Numa época de tecnologia digital em que as viagens são cada vez mais virtuais, só de celebrar as providências e a sensação de acolhimento e liberdade que senti nas montanhas de Minas Gerais já vale este momento. Desculpem o tamanho do texto, mas impossível resumir tamanho aprendizado que levarei para toda vida. Acontecimentos tão simples e verdadeiros. E é esta verdade que tenho atraído para minha jornada até hoje.

Dica de livro: A Profecia Celestina

Isabela Avelar

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